10 – Podes Realizar a Virtude Suprema?

Podes abraçar o espírito e o corpo em uma unidade, sem que se separem?

Podes concentrar o sopro vital e alcançar a flexibilidade de um recém nascido?

Podes limpar a mente e a visão até que fiquem sem máculas?

Podes amar o povo e governar a nação pela não-ação?

Podes abrir e fechar as portas do Céu com o princípio feminino?

Podes espraiar a consciência nas quatro direções sem o saber pessoal?

Podes gerar e nutrir todas as coisas sem desejar possui-los?

Podes dar de si sem expectativa de receber algo em retorno?

Podes guiar as pessoas e não tentar controla-los?

Se sim, isto é a realização da virtude suprema.

Realizar a virtude suprema

Estas são perguntas silenciosas que podemos formular no nosso Coração.

Elas são como um arauto dentro de mim sempre a me recordar das virtudes celestes que devem estar presentes na caminhada terrestre.

Nos momentos em que o esquecimento toma conta do meu ser e me torno mecânica, me recordo da possibilidade da união do espírito e do corpo.

Podes abraçar o espírito e o corpo em uma unidade, sem que se separem?

E prontamente um estado diferente do normal corriqueiro me toma e fico mais presente e desperta.

Os dois, espírito e corpo, embora opostos, devem se cruzar. O espírito sozinho se degenera, fica estéril como o intelecto sem sentimentos. O corpo-essência sozinha perde o seu brilho e fenece. O abraço dos dois gera a radiância do espírito e a vida exuberante do corpo. 

O corpo retorna à flexibilidade perdida e o espírito à sua visão clara das coisas. O amor e a receptividade do feminino possibilitam atravessar os momentos de luz e de escuridão da vida.

Assim sem o desejo de realização pessoal caminhamos de forma espontânea e natural, sem o desejo de posse, expectativa de ganhos e controle.

E sim, isto é a realização da Virtude Suprema.

09 – Saber Parar (Novo)

É melhor parar do que encher algo até a borda

Não se pode conservar o fio de uma lâmina afiada ao extremo.

Não se é capaz de proteger uma sala cheia de ouro e jade.

Aquele que é arrogante na fama e riqueza traz a ruína para si.

Uma vez realizado o trabalho com sucesso, recolha-se. 

Esse é o Caminho do Céu.

Saber Parar

Saber parar é saber recolher-se quando algo já foi realizado e o objetivo já foi atingido. Saber parar é não cair na tentação ambiciosa de querer sempre mais e mais. É satisfazer-se com aquilo que é suficiente.

Por exemplo:

Ao se alimentar, saber parar significa que quando o estômago estiver com sua capacidade preenchida em 70 ou 80% não é mais necessário comer. Isso possibilita os movimentos digestivos.

Qualquer exercício ou prática realizado em demasia tem efeitos adversos no desgaste da vitalidade.

Qualquer remédio tem o seu nível de toxicidade e não devemos exagerar na dosagem.

Os saberes e riquezas adquiridos devem fluir ao invés de ficarem acumulados conosco.

Arruinamos a nossa vida se não cessarmos a ânsia da insatisfação. Até as células do nosso corpo descontrolam-se e geram doenças autoimunes ao “querer mais e mais”.

Chegaremos ao ponto de não haver mais volta para o que é natural…

Saber parar e retornar é uma lei da natureza!

Assim como o sol do meio dia ou a lua cheia, que chegam na sua plenitude, e em seguida iniciam o seu recolhimento a fim de que possam se plenificar novamente.

Essa lei da natureza atua também no destino dos seres humanos.

“Uma vez realizado o trabalho com sucesso, recolha-se.

Esse é o Caminho do Céu.”

08 – A virtude da Água (Novo)

A suprema virtude é como a Água.

Vivifica a todas as coisas sem se opor a nada.

Flue em lugares inferiores rejeitados por todos.

Por isso a Água representa o Dao.

Como a Água:      

No permanecer, fique próximo à terra.

No sentimento, vá fundo no coração.

Na relação com os outros, seja tolerante.

Na fala, seja sincera.

No governo, seja harmoniosa.

No trabalho, seja competente.

Na ação, aguarde o momento oportuno.

A suprema virtude não disputa.

Por isso é irrepreensível.

A virtude da natureza da Água

A civilização chinesa começou às margens do Rio Amarelo. A imensa planície da bacia deste rio é fértil e gera abundância. No entanto, os chineses também o conhecem por um nome que nos revela uma outra faceta: Rio das Lamentações, cujos transbordamentos causaram muitas mortes. O desgelo das altas montanhas do oeste da China e as obstruções causadas pelos sedimentos em seu leito provocavam enchentes catastróficas que tiraram a vida de milhões de pessoas.

Foi muito difícil domar as águas deste caudaloso rio, mas Yu conseguiu e até hoje é lembrado pelo povo chinês pelo seu feito. A tradição conta que por volta do ano de 2.200 a.C., uma grande inundação do Rio Amarelo afligia a China. O imperador Yao, que reinava na época, designou Gun, seu conselheiro, para resolver o problema. Gun decidiu construir diques para conter a água. Seus diques funcionaram por um tempo determinado, mas a pressão da água era enorme, provocou o rompimento dos reservatórios e uma tragédia ainda maior.

Gun foi destituído e seu filho Yu foi chamado para suceder o pai. Ele criou um sistema de diques associado ao alargamento dos canais e também abriu novos canais fluviais que serviram para o escoamento das águas e irrigação dos campos. Assim, as águas do rio puderam cumprir com a sua natureza: descer, umedecer e nutrir a terra no seu caminho de volta ao mar.

Esta história mostra que Yu compreendia bem a natureza da água e por isso, ao invés de combatê-la, permitiu que ela manifestasse a sua virtude suprema que é justamente descer, umedecer e nutrir. Além de sua sabedoria, Yu também era admirado pela dedicação à sua missão. Dizem que, de tão focado, que nem sequer quando passava em frente de sua casa, entrava para ver os familiares.

Pelos seus méritos, foi-lhe concedido a missão de governar o Império. Ele é conhecido na cultura chinesa como “Imperador Yu, o Grande, que regulou as águas”. Yu reinou entre os anos de 2.205 a 1.523 a.C. dando início à dinastia Xia, a primeira da história da China.

Esta história me faz pensar nas águas dentro de mim: como posso regulá–las? Tal como o Imperador Yu, preciso compreender a natureza das águas internas.

Na MTC, o sangue que circula pelo nosso corpo, no interior dos vasos sanguíneos, é a água que umedece, nutre, purifica e leva a consciência às células, órgãos, vísceras e também, mais externamente, aos ossos, músculos, tendões e pele.

Na fisiologia da MTC, o órgão Coração tem a função de governar a circulação sanguínea controlando o sangue e os vasos. O órgão Baço controla o transporte do sangue evitando o seu extravasamento para fora dos vasos.

O Coração é do elemento Fogo e tem associado a ele o sentimento do entusiasmo. Esse sentimento é a emoção da alegria pura inerente à vida. É esta emoção que faz com que o movimento da circulação do sangue se processe com plenitude sem se desviar. No entanto, o Coração quando está “eufórico”, voltado para fora, tem o fogo ardente e, ao invés de promover a circulação do sangue, a consome.

O Baço é do elemento Terra e tem associado a ele o sentimento de sinceridade. A sinceridade  traz estabilidade e centramento. Uma terra estável canaliza o sangue e nos torna produtivos, evitando o assoreamento e o consequente extravaso do sangue de seu leito. Quando a função do Baço é debilitada pelo excesso de pensamentos e dispersão da atenção, o seu elemento Terra também se fragmenta, levando o sangue a sair dos vasos. Esse trasbordamento é nocivo como uma enchente, ocasiona a perda do sangue e de sua função vivificante.

Para regular as águas dentro de mim, é preciso cultivar as emoções e as virtudes que harmonizam as funções do Coração e do Baço. Principalmente a da alegria associada ao Coração e a da sinceridade associada ao Baço.

Laozi nos aconselha a ser como a Água em tudo que fazemos. Desta forma as Águas internas fluirão com harmonia.

07 – Longevidade do Céu e Terra (Novo)

O Céu é eterno e a Terra é duradoura.

Porque Céu e Terra podem ser eternos e duradouros?

Porque eles não vivem só para si.

Por isso são longevos.

O sábio se coloca por último e mesmo assim lidera.

Renuncia a própria vida e mesmo assim a conserva.

Não quer nada para si e mesmo assim se realiza.

O Céu, a Terra e o Sábio não existem só para si

Na infância, quando a gente fazia uma travessura, o jeito do meu pai nos repreender era dando um forte cutucão na nossa testa, entre os olhos. Acompanhando o cutucão, ele nos dizia num tom grave: “san tian!”, que em chinês quer dizer “você está ferindo o Céu!”.

A sensação daquela advertência permanecia por longo tempo em mim e me trazia o sentimento de que as minhas ações podiam realmente repercutir até no céu, de que uma má ação minha podia deixar o céu triste. Assim, desenvolvi a consciência de que pertenço à algo maior, de que não sou separada de nada que me rodeia.

O pertencimento é muito importante porque nos confere significado à existência. Se me separo do todo ao qual pertenço, fico desenraizado e em solidão.

Para pertencer ao todo, é preciso ser humilde e colocar os nossos desejos e vontades por último, deixando-se ser liderado pelos aspectos superiores da alma e do espírito.

Dessa maneira, tudo o que fazemos (e também como fazemos) fica para o todo e não apenas para nós. Essa é a maneira de se fazer longevo.

Neste capítulo, Laozi diz que o que torna o Céu e a Terra longevos é o fato de que não vivem só para si. A longevidade do qual fala não é da matéria, que sempre é efêmera, mas sim da alma e do espírito, que existem eternamente mesmo sem a forma física da matéria.

06 – O Espírito do Vale

O espírito do Vale nunca morre,

É a mulher, mãe primal.

A porta de entrada da fêmea misteriosa,

É chamada de raiz do universo.

Sempre presente, sua ação é inesgotável.

O Espírito do Vale

Os vales na natureza se aprofundam por entre as montanhas. Enquanto as montanhas são a terra maciça que se ergue em busca do céu, os vales são os espaços vazios do céu que se aprofundam na terra. O céu verte a sua luz para fecundar o vale que retribui gerando miríade de cores e seres. O vale é a expressão do amor que liga o Céu e a Terra.

O amor é o feminino que acolhe, que une, é o receptivo que aponta para a totalidade. No alquimista, é a soror mystica, seu lado feminino, que realiza a obra de transmutar a matéria vil em ouro.

Na nossa natureza interna, temos vales distribuídos pelo corpo: cada espaço vazio por entre os ossos, tendões e músculos são pequenos vales que contam com a presença do espírito materno de constante criação. Os pontos de acupuntura, que invisíveis se distribuem pelo corpo através dos meridianos, são pequenos vales (cavidades) onde a energia é gerada e se renova.

No nosso corpo há um grande Vale! Ele está nas profundezas de nosso ser, no baixo ventre. Trata-se da bacia pélvica que com seu formato abaulado contém nossa essência vital. Podemos dizer que lá é “a raiz do Céu e da Terra”, onde podemos encontrar “o portal para a misteriosa natureza materna” que cria sem cessar o nosso espírito de vitalidade.

Nas artes corporais chinesas, antes de iniciarmos os movimentos, buscamos esta união internamente. É quando na preparação da prática, as pálpebras semicerram e vertem a luz dos olhos para o interior, para o baixo ventre, para o nosso Vale. Este encontro da luz celeste com a essência terrestre é regido pelo amor (feminino), gera vitalidade, é a raiz da vida e da consciência. Assim, em contato com esta fonte inesgotável, os movimentos são gerados e se sucedem em estado amoroso.

05 – Natureza e Santos não são Caridosos (novo)

O Céu e a Terra não são caridosos.

Tratam os seres como cães de palha¹.

Os Santos não são caridosos.

Tratam as pessoas como cães de palha.

O espaço entre o Céu e a Terra é como um fole:

É vazio, mas não se esgota.

Com seu movimento, cria sem cessar.

Falar demais esgota.

Melhor é manter-se no centro.

1) Cães de palha: São utilizados como oferendas em rituais e sacrifícios para desejar boa colheita.

O Caminho não é Caridoso

O Caminho que nos é destinado não é caridoso e não tem preferências: deixa nascer e perecer por si mesmo.

Uma semente enterrada na profundidade escura da terra luta para brotar e crescer em direção ao céu, assim como a nossa alma que, na escuridão do nosso corpo, também luta para brotar e expandir em direção ao mais alto.

Tanto na natureza como na vida, a luta e o sacrifício devem ser constantes para cultivar o espírito e evoluir.

A ostra forma a pérola no seu interior a partir do incômodo causado por um grão de areia ou um parasita que a invade. Na impossibilidade de expulsá-lo, a ostra faz um trabalho de alisar e arredondar o elemento que a machuca, envolvendo-o com uma substância chamada madrepérola. O elemento irritante é transformado aos poucos numa esfera brilhante e polida, uma joia muito valiosa: a pérola.

O Caminho que nos foi dado não é caridoso. Para vive-lo é preciso determinação e coragem. Com o tempo, o sacrifício, o esforço e a persistência não só transformam a dificuldade como nos fazem cultivar algo precioso dentro de nós. Cabe a cada um, ser responsável pelo seu destino.

Nas artes corporais chinesas, esta dedicação é chamada de Gongfu, que significa: “trabalho persistente e prolongado que eleva aquilo que se faz ao estado de arte”.

E como diz Laozi:

Falar demais esgota,

Melhor é manter-se no centro.

O Gongfu é obtido quando se pratica de forma centrada, sem muitas palavras e dispersões.

Como diz Guimarães Rosa em sua obra Grande Sertão: Veredas  “Viver é Perigoso”.

“Viver é muito perigoso. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo. Travessia perigosa, mas é da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. O mais difícil não é ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”

(Guimarães Rosa)

04 – O Caminho Inesgotável (novo)

O Caminho é Vazio, mas inesgotável em suas potencialidades.

Vasto e profundo está na origem de todos os seres.

Abranda as agudezas.

Desata os nós.

Sombreia o esplendor.

Funde-se à terra.

É puro e onipresente.

Sua ascendência é desconhecida.

É anterior ao criador.

O CAMINHO INESGOTÁVEL

Minha mãe nasceu em Liaoning no ano de 1905 e meu pai, três anos depois, em Heilongjian. Ambas as províncias são localizadas à nordeste da China, bem distantes da cidade de São Paulo, no Brasil, para onde vieram em 1952.

Quando se casaram, ela com 24 e ele com 21 anos, meu avô materno que era um estudioso da astrologia chinesa, investigou o horóscopo de ambos. Ele viu que meu pai tinha uma energia vital forte, mas que a energia da minha mãe era mais forte que a dele e isso era bom. Previu também que teriam filhos homens e mulheres e que atravessariam o grande mar para viver em um lugar longínquo.

Alguns anos depois do casamento de meus pais em 1929, o Japão invadiu o nordeste da China, o que os fez sair de sua aldeia natal e iniciar uma longa peregrinação fugindo da guerra.

Em 1949, os japoneses haviam se retirado da China e meus pais estavam em Nanjing (no sudeste da China) onde pretendiam finalmente ter uma casa e viver em paz. Mas eles foram surpreendidos pela Revolução Comunista e desta vez, tiveram de fugir para a ilha de Taiwan, a cerca de 180 quilômetros da costa sudeste da China continental.

Em Taiwan, eles se deram conta de que não poderiam mais voltar. A China iniciava um longo isolamento com o resto do mundo e já não era mais possível nenhuma comunicação com o continente chinês. Foi então, que meu pai decidiu iniciar nova vida em outro país. Decepcionado com as guerras, queria ir para um lugar bem distante, do outro lado do mundo e assim, escolheu o Brasil como a nossa nova pátria.

“É um país novo, tem grandes extensões de terra fértil e a natureza exuberante dará de tudo a quem nela se fixar. O clima é agradável, não castiga aos que nela vivem com dias escaldantes nem com frios enregelantes. O povo deste lugar é gentil, acolhedor. Aqui poderemos começar uma vida nova e nossos filhos se desenvolverão em paz.”

E, assim, em 16 de janeiro de 1952 embarcamos em direção ao Brasil no navio “Ruys” de bandeira holandesa que estava ancorado na baia de Hong Kong.

Em seu diário, minha mãe escreveu: “queria poder permanecer em minha vila natal sem enfrentar este êxodo, mas preciso ser corajosa, vou ao novo continente em busca da paz e amor, construir um lar permanente, mesmo que para isso seja necessário usar o sol como roupa e o céu como teto. “

Quando pequena, a história de meus pais me fazia pensar sobre os seus caminhos de vida, sobre os perigos pelos quais passaram e sobreviveram, e muitas vezes imaginava como seria se eles tivessem morrido nas guerras: eu não teria nascido e nem teria vindo ao Brasil e não teríamos de enfrentar as dificuldades de nos adaptarmos à uma cultura tão diferente.

Hoje, meus pais já não estão entre nós e eu já trilhei uma boa parte do meu próprio Caminho aqui no Ocidente. Sinto que cada um tem o seu caminho e fluímos por ele em direção ao nosso destino.

Meu avô “viu” nos meus pais uma união de energias fortes para trilhar o caminho que lhes foi destinado e enfrentar todos os obstáculos e dificuldades, inclusive a de atravessar um grande oceano para o desconhecido.

“O Caminho é Vazio, mas inesgotável em suas potencialidades.

Vasto e profundo está na origem de todos os seres.

Abranda as agudezas.

Desata os nós.

Sombreia o esplendor.

Funde-se à terra.”

O caminho que nos é dado corresponde à nossa vitalidade em superar as dificuldades e obstáculos que nele se apresenta.

O universo é entrelaçado por energias que fluem por cursos que lhes correspondem.

Como as órbitas dos elétrons nos átomos, cada elétron gravita em um nível compatível com a sua energia. Ou como os planetas e estrelas que seguem cada qual em seu curso compatível com a natureza de sua energia.

03 – Nutrir o Ventre, empalidecer vontades (novo)

Não incentivar o sucesso e não valorizar o prestígio, previne a competição.

Não ostentar riquezas, previne roubos.

Não exibir o que é desejável, previne a inquietação do coração.

Portanto, é sábio seguir esvaziando o Coração,

nutrindo o ventre, empalidecendo as vontades e fortalecendo os ossos.

Manter-se sem saberes e sem desejos.

Fazer com que o erudito, cheio de saberes, não ouse interferir.

Assim, agindo pela não ação, nada fica sem governo.

Nutrir o ventre e empalidecer as vontades

Quando comecei a me interessar pelo Daodejing, na minha juventude, meu pai me desaconselhou a ler o livro. Apesar do grande apreço que ele tinha pela sabedoria de Laozi, preocupava-se com a interpretação que eu faria daqueles 81 capítulos. Achava que meu desenvolvimento profissional poderia ser prejudicado pelos princípios de não-ação que a obra apresenta. Ele sabia que aqui no Ocidente a sociedade é muito competitiva e que naquele momento era necessário que eu “agisse” para ter as minhas próprias experiências.

Afim de me encaixar nessa cultura de competição e disputa que se manifestava na escola, no cursinho, no vestibular, na faculdade, no trabalho e na vida cotidiana em geral, paguei o preço com a minha saúde. Para ter o sucesso e o prestígio admirados por esta sociedade, eu convivia com indisposição, fraqueza, insônia.

Até que um dia, eu me dei conta de que, sem vitalidade, não conseguiria realizar o meu destino e nem ser feliz. E foi assim que decidi buscar as artes corporais chinesas e sua filosofia.

Gradativamente, fui restabelecendo a minha vitalidade. Nas práticas das artes corporais chinesas não há disputa nem competição, não precisamos de coisas materiais como equipamentos e acessórios, e o único desejo que se tem é o de movimentar-se com o Coração sereno.

À medida que eu praticava, fui percebendo que tais artes eram a própria medicina tradicional chinesa (MTC) posta em ação. Com elas, senti em mim a importância de esvaziar o Coração, nutrir o ventre, empalidecer as vontades e fortalecer os ossos.

Para a MTC, é no ventre que o Estômago digere os alimentos e o Baço refina e assimila a sua essência. Essa essência nutritiva, por um lado sustenta o corpo e por outro, dá a energia necessária para o Coração ver as coisas de forma clara. Nutrir o ventre também possibilita um Coração puro e confortado, evitando que ele seja tomado por desejos. A combinação entre o ventre nutrido e o Coração puro estimulam a função do Rim na região do baixo ventre. O Rim fortalece os ossos e com ossos fortes, temos estabilidade e enraizamento.

Conhecer é importante, mas muita erudição e saberes geram excesso de pensamentos, nos afastando do propósito espontâneo e do contato direto e adequado com as coisas.

Como diz o hexagrama 5, Nutrição, do I Jing (O Livro das Mutações):

“Quando as nuvens se elevam nos céus, é sinal de chuva. Não há nada a fazer senão esperar que a chuva caia. O mesmo ocorre na vida quando o destino articula seus movimentos. Não se deve ceder a preocupações nem procurar moldar o destino com intervenções prematuras. Ao contrário, deve-se, com tranquilidade, fortificar o corpo, comendo e bebendo, e o espírito, através da alegria e bom humor. O destino virá no seu tempo devido e então se estará preparado.”

(I Ching: o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 18. ed. p. 44).

Tenho vivido bem desde que pratico as artes corporais chinesas. Com o Coração sereno, sinto que no ato de me nutrir assimilo a energia da mãe terra que, generosamente, nos cede a sua essência. Assim, com mais vitalidade, sinto-me preparada para os desafios que a vida me apresenta.

02 – As Duas Faces do Dao (Novo)

No mundo, ao considerar o belo, surge o feio.

Ao considerar o bom, surge o mau.

Por isso, Ser e Não-Ser geram um ao outro.

Difícil e fácil complementam um ao outro.

Longo e curto dão forma um ao outro.

Alto e baixo estão contidos um no outro.

Notas e melodias harmonizam umas às outras.

Frente e verso seguem um ao outro.

Portanto, o homem sábio faz as coisas pela não ação.

Caminha ensinando sem palavras.

As miríades de coisas se desenvolvem e não são restringidas.

O homem sábio, que segue o Dao, cria e não toma posse.

Faz as coisas sem esperar reconhecimento.

Realiza méritos e não se apega.

Sem apego, sem reconhecimento, por isso não se extingue.

AS DUAS FACES DO CAMINHO

A escada que usamos para subir é a mesma que usamos para descer. Subimos e descemos pela mesma escada inúmeras vezes. E a nossa vida é assim mesmo: o que sobe deve descer e o que desce deve subir. São as polaridades que permitem o movimento e a transformação.

Por exemplo: o sopro vital do nosso corpo não cessa o seu movimento de subir até a região mais alta da cabeça para depois descer até as profundezas do baixo ventre. Se o sopro que sobe não descer ou se o sopro que desce não subir, haverá desequilíbrio e doença por causa da estagnação do movimento.

Este poema diz que muitas vezes somos levados a preferir uma coisa em detrimento da outra. Preferimos o belo ao feio, o bom ao mau. Mas, um lado não existe sem o outro! Querer se fixar em um deles, nos leva à estagnação e vai contra a lei natural de movimento e transformação.

Nas práticas corporais chinesas, os mestres ensinam: “Quando uma parte do corpo se movimenta, todo o corpo se movimenta; quando uma parte está parada, todo o corpo está parado”. Então de forma espontânea, sem fazer nada, o todo acolhe a parte e a parte retorna ao todo.

O caminhar no Caminho ocorre sem palavras, sem restrições, sem sentimento de posse, sem expectativa, sem apego. Errando ou acertando, sendo feliz ou infeliz, o que importa é caminhar numa direção firme, sem parar. As oscilações serão espontâneas tal qual a alternância dos pés ao caminhar.

E uma longa caminhada começa com um passo.

01 – DAO (Caminho) novo

O Dao que pode ser dito não é o Dao onipresente.

O Nome que pode ser nomeado não é o Nome eterno.

O inominado é o Não-Ser, princípio do Céu e da Terra.

O nomeado é o Ser, mãe da miríade de coisas.

Através do Não-Ser contemplam-se as sutilezas.

Através do Ser contemplam-se as formas.

Não-Ser e Ser, embora distintos, nascem da mesma Origem.

Tanto o Não-Ser quanto o Ser são chamados de mistério.

A Origem é mistério além do mistério.

É o Portal para todas as maravilhas.

Dao (Caminho)

Lao Zi, neste primeiro capítulo, diz que não é possível falar sobre o Dao e que também não é possível lhe dar um nome. No entanto, ele escreveu o livro clássico do Daodejing que contém 5000 ideogramas e, ao inominado, deu o nome de Dao (Caminho).

Na minha leitura sobre o Dao ao longo dos anos, fui percebendo que estes 5000 ideogramas do Daodejing não são para conceituar o Dao, mas para reorientar a nossa percepção da realidade e nos colocar no nosso devido Caminho.

Ao nomear o inominável, Laozi escolheu Dao, que significa tanto Caminho como caminhar sem se desviar. Este nome, ao invés de caracterizar algo, age como um incentivo à busca, ao movimento constante do caminhar sem a qual o Caminho não existe, não se revela. 

Assim ao ler o Daodejing devemos procurar sentir o Dao e não querer entendê-lo intelectualmente. As mensagens são para serem percebida com a totalidade de nosso ser, o que significa escutar o Dao com o nosso Coração. Ao ler desta forma, sem desejos, as palavras trazem um encantamento que silenciam a mente e ressoam no Coração. É como numa oração ou um mantra que, a partir da repetição, faz com que as palavras esvaneçam ecoando um som silencioso.

Na MTC, o Coração é o Órgão considerado o governante, que reina e abarca todo o nosso ser. A escuta do Dao apreendida no Coração deve aprofundar-se no Rim, cuja função é a escuta, já que este é o Órgão que tem abertura nos ouvidos. Ao unir Coração e Rim, podemos escutar o Dao.

Tanto a maravilhosa força criadora do Não-Ser, quanto as maravilhosas formas geradas pelo Ser, provêm da mesma origem, e esta origem é como se fosse um portal que nos leva a todas as maravilhas.